Sempre
vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de
escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a
ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém
vai se matricular.
Escutar
é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser
cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia
nenhuma“. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como
são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós,
fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é
colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as
janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A
gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas
- entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da
filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam
outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para
se ver e preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz
muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres
conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos.
(Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste
gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar
sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a
sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher
de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma
literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus.
Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos
médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira
nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de
dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o
aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que,
supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas
isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de
sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que
os sofrimentos da primeira.
Parafraseio
o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é
dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a
dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um
palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a
dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada
consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer,
que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do
ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: “Há quem
não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a
manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no
fundo, somos os mais bonitos...
Tenho
um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos,
estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“),
foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA,
voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As
reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um
longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto,
diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem
orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo
vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se
tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à
espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto.
Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida
seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos,
pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são
meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva
tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a
seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por
delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava
eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua
(tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que
você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito
tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que
você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é
pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando
cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.
Há
grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos
passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas
outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma
antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz
onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não
total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições.
Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa.
Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter
filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui
informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da
liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde.
Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro,
todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na
madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz
mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com
um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“
definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se
assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da
hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras
cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos
Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia,
como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas
macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram.
Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E
ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada
fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o
hino...“ Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que
eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As
pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me
alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso
silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio
dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a
ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que
se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E
música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A
música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No
silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós -
como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy
musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz
mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me
veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência
religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do
falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia,
que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se
ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza
mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente
se juntam num contraponto.
Ouvir ≠ escutar ≠ estar interessado.
ResponderExcluir